O capitalismo beleza

A nova indústria que engloba os primeiros negócios legais de cannabis

 

A cannabis sempre esteve ligada ao empreendedorismo artístico, especialmente na música, como mostrou Raulzito, nosso maluco beleza, que inspirou o título deste texto. Mas, depois que ganhou status de medicamento alternativo e suas fibras abriram um enorme leque de possibilidades na indústria, o cânhamo passou a ser levado mais a sério no mundo corporativo. Enquanto são discutidas as questões éticas e morais, estão ocorrendo em vários países e estados o processo político necessário, às vezes até mesmo como uma pauta eleitoral, para a regulamentação do cultivo, industrialização, distribuição e consumo.

As vozes são dissonantes e o debate acalorado. De um lado, envolve os setores conservadores nos costumes, que apoiam a proibição e o combate policial. Do outro, já se articulam políticos, juristas, advogados, lobistas, marqueteiros, industriais e a mídia. Mas existe também uma chance única para pessoas comuns moldarem a forma de um novo setor, ou um novo tipo de capitalismo. Essa foi a tônica de algumas palestras sobre o tema que acompanhei no primeiro dia do SXSW. Em uma delas, Steve DeAngelo, considerado o Pai da Indústria Legal da Cannabis, foi enfático ao dizer que esse movimento só prosperou, porque os pioneiros como ele nessa iniciativa, ativistas e juristas, eram brancos. Se fossem negros, teriam sido rechaçados à base de cassetetes, já que essa questão é vista através das lentes embaçadas de uma sociedade que pratica o racismo estrutural.

Agora, pessoas que em geral não tinham voz na sociedade, como consumidores, pequenos investidores e empresários de todas as classes e cores, têm a oportunidade de atuar e influenciar no que está se tornando uma grande indústria global. Todos podem fazer uma pergunta que até então era reservada apenas aos grandes conselhos corporativos: se você pudesse construir uma nova indústria, como ela seria? Quando pessoas comuns começam a abrir os primeiros negócios legais de cannabis, é possível construir uma cultura de inclusão radical, com uma economia baseada no compartilhamento e na compaixão, incorporando sustentabilidade, diversidade, ativismo e justiça social nesse novo modelo de negócio. Audiências públicas estão ouvindo as mesmas reivindicações em várias cidades pelo mundo. O Conselho Municipal de Oakland, na Califórnia, se tornou em 2017 a primeira jurisdição a promulgar disposições de igualdade social em seus programas de licenciamento de cannabis. Desde então, muitas outras cidades, estados e até mesmo países estrangeiros adotaram o exemplo. Estaria nascendo algum tipo de Cannapitalismo?

Para Steve, tudo começa pela planta. O cultivo em grande escala atrai financiamento em grande escala, grandes escritórios de advocacia, grandes fabricantes, grandes distribuidores, grandes empresas de marketing e grandes orçamentos publicitários, deixando pouco espaço para a produção artesanal e familiar. “Se quisermos evitar esse resultado, temos que limitar razoavelmente o tamanho do cultivo de cannabis e o número de cultivos por entidades, mas essa pressão precisa vir de baixo. Há uma batalha em curso pela alma da indústria de cannabis e cada consumidor desempenha um papel nela”, conclui o pai da maconha legal.

Pode parecer uma grande utopia, mas o fato dessa discussão estar sendo travada num fórum tão relevante indica que tudo pode acontecer.

Autor: Renato Cavalher

Publicado originalmente no Meio&Mensagem, em 17 de março de 2021.

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