Mês: março 2021
Máquinas que sentem
Como usar a tecnologia para promover uma conexão humana mais profunda
Há pelo menos duas décadas, a inteligência emocional ou QE (quociente emocional) vem ganhando a atenção das corporações na hora de contratar ou promover seus executivos e gestores. Mas quem imaginava que nos últimos 20 anos também houvesse gente estudando a sua aplicação no mundo virtual? Quem vem liderando essas pesquisas é a Dra. Rana el Kaliouby, ph.D. em aprendizado de máquinas e estudiosa da humanização da tecnologia. Ela trabalhou com o Media Lab do MIT na missão de construir a inteligência artificial emocional e foi a palestrante de um dos painéis mais esperados do SXSW.
Na opinião dela, a inteligência artificial já está se tornando popular, assumindo funções que tradicionalmente eram feitas por humanos, mas passa por uma crise de confiança. Há dúvidas se as organizações estão implantando esses sistemas de forma correta e responsável, dentro do que ela chama de “economia empática”. Quando as empresas pensam em IA, o foco é na automação, produtividade e eficiência, ninguém está realmente pensando em como trazer a tecnologia de uma forma que promova uma conexão humana mais profunda.
Mesmo antes da pandemia, grande parte da nossa comunicação se dava de forma digital, sendo que menos de 10% era baseada na escolha precisa das palavras e mais de 90% era feita de modo não verbal, dividida entre expressões faciais, gestos com as mãos, linguagem corporal e entonação de voz. Agora, novas tecnologias estão sendo incorporadas para captar esses sinais, decifrar as emoções envolvidas e transformá-las em dados que podem nutrir o aprendizado das máquinas. Os primeiros testes dessa tecnologia foram aplicados no autismo, como forma de ajudar na conexão emocional com crianças que lutam para entender o não verbal e, inclusive, evitam o contato visual. Utilizando o Google Glass, foi possível ler as expressões e gamificar as interações, oferecendo um sistema de pontuação a cada contato visual. “As crianças simplesmente amaram isso”, contou a pesquisadora.
No MIT Media Lab, o programa hospedou mais de 500 empresas que expressaram interesse em implantar a tecnologia de alguma maneira. Só quando a lista foi reduzida a 20 empresas é que a Affectiva, empresa fundada por Rana, saiu do MIT e começou a fase avançada de testes para envolver e compreender melhor os consumidores. “Fizemos uma pesquisa em 90 países ao redor do mundo, medimos as respostas de mais de 10 milhões de pessoas que concordaram em ligar a câmera enquanto interagiam com suas telas ao serem impactadas por mais de 50.000 anúncios em vídeo”.
Foram analisadas as reações cruzadas entre o compartilhamento de conteúdos nas redes sociais com o comportamento real de compra para entender como essa jornada emocional correlaciona a viralidade com a intenção de consumo e até mesmo com a lealdade à marca. Mas não é tão simples assim. No ano passado, durante a pandemia, testaram campanhas publicitárias dos principais anunciantes do mundo e descobriram que a empatia de ocasião não é suficiente para criar afinidade com a marca. É preciso que ela esteja alinhada com os propósitos verdadeiros da empresa.
Existem empresas que estão integrando esse tipo de tecnologia aos call centers, que lidam com níveis elevados de frustração e raiva, facilmente identificados pelo recurso da voz. Nesse sentido, também os assistentes de voz, como Alexa, Google e Siri, estão se valendo desse recurso. Com o home office, outro fenômeno surgiu. Nas relações virtuais, é muito difícil ter uma noção clara de quem está motivado, quem está estressado e quem está à beira de um esgotamento físico. Como ter certeza de que estão todos mentalmente saudáveis? Com a interface da tecnologia, é possível identificar sinais de ansiedade, estresse, depressão e agir preventivamente para evitar o pior.
Enfim, existe uma infinidade de aplicações possíveis para conferir sensibilidade emocional às máquinas e torná-las onipresentes em nossas vidas. Mas é preciso garantir que isso seja feito da maneira certa, com responsabilidade, levando em conta todas as implicações éticas e morais para que essa tecnologia não seja desenvolvida de forma tendenciosa. Para garantir isso, já foi criada uma organização chamada Partnership on AI, da qual fazem parte gigantes da tecnologia, como Google, Microsoft, Amazon, Facebook, IBM e outras organizações de liberdades civis, para tentar articular quais são as consequências não intencionais, prever o que pode dar errado e elaborar uma regulamentação cuidadosa para proteger empresas e consumidores.
Melhor torcer para que o bom senso prevaleça e os anunciantes tenham ainda mais sensibilidade do que as máquinas para entender o momento de cada consumidor e oferecer os produtos certos nas horas certas.
Autor: Renato Cavalher
Publicado originalmente no Meio&Mensagem, em 19 de março de 2021.
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A cannabis sempre esteve ligada ao empreendedorismo artístico, especialmente na música, como mostrou Raulzito, nosso maluco beleza, que inspirou o título deste texto. Mas, depois que ganhou status de medicamento alternativo e suas fibras abriram um enorme leque de possibilidades na indústria, o cânhamo passou a ser levado mais a sério no mundo corporativo. Enquanto são discutidas as questões éticas e morais, estão ocorrendo em vários países e estados o processo político necessário, às vezes até mesmo como uma pauta eleitoral, para a regulamentação do cultivo, industrialização, distribuição e consumo.
As vozes são dissonantes e o debate acalorado. De um lado, envolve os setores conservadores nos costumes, que apoiam a proibição e o combate policial. Do outro, já se articulam políticos, juristas, advogados, lobistas, marqueteiros, industriais e a mídia. Mas existe também uma chance única para pessoas comuns moldarem a forma de um novo setor, ou um novo tipo de capitalismo. Essa foi a tônica de algumas palestras sobre o tema que acompanhei no primeiro dia do SXSW. Em uma delas, Steve DeAngelo, considerado o Pai da Indústria Legal da Cannabis, foi enfático ao dizer que esse movimento só prosperou, porque os pioneiros como ele nessa iniciativa, ativistas e juristas, eram brancos. Se fossem negros, teriam sido rechaçados à base de cassetetes, já que essa questão é vista através das lentes embaçadas de uma sociedade que pratica o racismo estrutural.
Agora, pessoas que em geral não tinham voz na sociedade, como consumidores, pequenos investidores e empresários de todas as classes e cores, têm a oportunidade de atuar e influenciar no que está se tornando uma grande indústria global. Todos podem fazer uma pergunta que até então era reservada apenas aos grandes conselhos corporativos: se você pudesse construir uma nova indústria, como ela seria? Quando pessoas comuns começam a abrir os primeiros negócios legais de cannabis, é possível construir uma cultura de inclusão radical, com uma economia baseada no compartilhamento e na compaixão, incorporando sustentabilidade, diversidade, ativismo e justiça social nesse novo modelo de negócio. Audiências públicas estão ouvindo as mesmas reivindicações em várias cidades pelo mundo. O Conselho Municipal de Oakland, na Califórnia, se tornou em 2017 a primeira jurisdição a promulgar disposições de igualdade social em seus programas de licenciamento de cannabis. Desde então, muitas outras cidades, estados e até mesmo países estrangeiros adotaram o exemplo. Estaria nascendo algum tipo de Cannapitalismo?
Para Steve, tudo começa pela planta. O cultivo em grande escala atrai financiamento em grande escala, grandes escritórios de advocacia, grandes fabricantes, grandes distribuidores, grandes empresas de marketing e grandes orçamentos publicitários, deixando pouco espaço para a produção artesanal e familiar. “Se quisermos evitar esse resultado, temos que limitar razoavelmente o tamanho do cultivo de cannabis e o número de cultivos por entidades, mas essa pressão precisa vir de baixo. Há uma batalha em curso pela alma da indústria de cannabis e cada consumidor desempenha um papel nela”, conclui o pai da maconha legal.
Pode parecer uma grande utopia, mas o fato dessa discussão estar sendo travada num fórum tão relevante indica que tudo pode acontecer.
Autor: Renato Cavalher
Publicado originalmente no Meio&Mensagem, em 17 de março de 2021.