O Mundi é Plano

Toda grande agência ou grupo de comunicação que se preze possui o seu próprio modelo de planejamento para aplicar aos seus clientes. Por isso, quando iniciei como Chief Creative Officer da JWT Brasil, nos primeiros anos deste século, estranhei a falta de uma metodologia própria para planejar para os clientes, em sua maioria, multinacionais. Foi só numa viagem à sede da agência em Chicago, meses mais tarde, que conheci o TTB – Thompson Total Branding, que me foi apresentado pelo diretor de Planejamento Mike Kalassunas, considerado um dos pais do modelo. Fiquei impressionado com a forma como conseguiam reduzir todo o planejamento estratégico a uma única peça, chamada de post card. Era realmente um cartão-postal, com suas dimensões universais, no qual de um lado havia uma imagem que representava a essência da marca, o brand vision, e do outro, todas as informações sintetizadas numa diagramação típica dos cartões enviados pelos correios. No canto superior esquerdo, tinha uma legenda com a identificação da imagem do verso, seguida abaixo por um texto impresso em letras manuscritas, que descrevia os detalhes e as sensações evocadas pelo produto que seria anunciado. Do lado direito, havia espaços que eram preenchidos com o nome do destinatário, no caso, o público-alvo, assim como seu endereço, representado pelos principais mercados de atuação da marca. Todos os gestores da agência possuíam uma coleção de post cards dos clientes em suas gavetas, que eram utilizados diariamente, sem moderação.

 Ao perceber meu interesse, típico de quem estava vendo algo pela primeira vez na vida, Mike gentilmente me convidou para almoçar. Fomos a um restaurante do outro lado da avenida, o qual reputava como a melhor cozinha grega de Chicago, com a autoridade que só um legítimo descendente de gregos poderia ter. Ele me perguntou como funcionava o Planejamento na JWT Brasil e me senti na obrigação de ser absolutamente sincero. Disse que havia planejadores exclusivos para praticamente todos os clientes, mas que Planejamento e Criação eram universos paralelos, que trabalhavam sob um mesmo briefing e dentro do mesmo prazo, geralmente insuficiente para gerar as discussões internas necessárias antes de finalizar os trabalhos. Era comum eu chegar a uma reunião com o cliente para mostrar as campanhas criadas e ter que esperar o Planejamento terminar a sua apresentação, recheada de dados interessantes e conclusões sugestivas, que poderiam ter enriquecido muito aquele trabalho da Criação, elaborado apenas com a inspiração dos criativos durante a madrugada. Não raro, se constatava que a Criação havia tomado um rumo errado e que era necessário corrigir a rota. Enfim, naquela época, o Planejamento era um setor que trabalhava diretamente para os clientes, monitorando pesquisas, cruzando dados secundários e tabulando tudo em gráficos coloridos para facilitar a análise das equipes de Marketing. A Criação ficava à margem desse processo. No ano seguinte, não me surpreendi quando Mike visitou o Brasil e contratou um diretor-geral de Planejamento para implantar o novo sistema.

 Quando cheguei à OpusMúltipla, em 2003, a agência já era reconhecida pelo mercado por sua eficiência em planejar, mas ainda não existia um modelo próprio. Fiz a primeira provocação apresentando o TTB e logo um grupo de trabalho foi montado, liderado pela então diretora de Planejamento Arlete Martins, com o meu apoio e o talento do Paulo Vítola para escrever textos conceituais de forma quase poética. Nascia ali o MUNDI – Modelo Unificado de Diagnóstico e Integração. Partimos do princípio de que o documento deveria simplificar todas as informações relevantes para as campanhas em mais ou menos dez slides, para que fosse de fácil consulta e pudesse unificar o conhecimento entre todas as partes envolvidas no processo, dentro ou fora da agência. O objetivo era entregar, de fato, o discurso da Comunicação Integrada. Brincávamos que se um publicitário alienígena descesse no planeta, em dez slides estaria pronto para criar uma campanha para determinada marca. Na prática, o MUNDI servia para colocar não só os profissionais da agência em sintonia, mas também as equipes dos clientes e seus parceiros externos, como assessoria de imprensa, empresas de marketing promocional, de produção de eventos e todos os demais fornecedores envolvidos com a empresa.

 Com o tempo, outras empresas se constituíram em torno da OpusMúltipla, formando o Grupo OM Marketing e Comunicação, elevando ainda mais a importância do MUNDI na missão de integrar o trabalho dos especialistas das cinco empresas. O modelo evoluiu, ganhando novas ferramentas, mas a essência continuou a mesma. A parte inicial do documento apresenta o Universo da Marca dividido em três mundos: o Mundo Real, o Mundo Percebido e o Mundo Idealizado, cada um deles sintetizado em forma de texto, dentro do limite máximo de um único slide. No Mundo Real, são descritos de forma objetiva a história da marca, seus produtos, seus diferenciais e atributos, além das áreas de abrangência, marketing share, canais de distribuição e dados sobre a concorrência. Em alguns casos, tomamos a liberdade de ir a campo, na forma de mystery shoppers, para testar o atendimento nas lojas físicas ou virtuais e avaliar a abordagem de vendas, para que a experiência real possa ser confrontada com as informações fornecidas pelo cliente. O Mundo Percebido é o resumo das pesquisas de imagem de marca, descrevendo de forma sucinta como os consumidores ou usuários percebem a empresa, seus produtos e serviços. Já o Mundo Idealizado, representa o modo como desejamos que as pessoas percebam a marca em um período predeterminado de tempo, após serem impactadas pelo trabalho de comunicação proposto pelo Grupo.

 Integram ainda o MUNDI um miniguia de aplicação da marca, um painel conceitual com imagens que representam a empresa e seus consumidores, a declaração de posicionamento e um descritivo da essência da marca, primeiro em um parágrafo, depois em uma frase, até chegar a uma única palavra, um exercício que aprendi com o Lord Maurice Saatchi, um dos fundadores da agência britânica Saatchi and Saatchi, durante uma de suas palestras no Festival de Cannes. A parte prática do MUNDI vem depois, com o PIC – Plano Integrado de Comunicação, composto pela Estratégia Criativa e o Plano Tático. É na Estratégia Criativa que o planejamento realmente assume o seu papel transformador, apontando o caminho mais indicado para a marca, o que nem sempre significa o mais óbvio ou aparentemente mais seguro. É a estratégia que separa empresas de comunicação de meras agências de publicidade. Planejar é fazer escolhas. E escolher é abdicar de todas as opções possíveis, menos uma: aquela que será a grande aposta da marca.

 No momento atual da comunicação, muitas vezes a opção mais arriscada é a de não correr riscos e definir uma estratégia conservadora de posicionamento no mercado. Os consumidores costumam ser implacáveis com a falta de ousadia ou propósitos claros, e há sempre um concorrente ou novo entrante disposto a romper com os padrões de mercado e apostar na disrupção, levando junto uma legião de seguidores em busca de novidades ou que apenas querem quebrar a monotonia do consumo passivo. Foi para ajudar nossos clientes nessa difícil missão, que criamos ferramentas exclusivas, que aumentam a precisão do foco e a assertividade das campanhas publicitárias All Lines, ou seja, aquelas que se manifestam tanto no On quanto no Offline.

 Há dois anos, incentivado pelo Rodrigo Rodrigues, estreei o cargo de Head of Creative Strategy do Grupo OM e passei a me dedicar ao desafio de integrar o Planejamento e a Criação, de modo a oferecer às equipes criativas os apontamentos necessários para se chegar à melhor formatação da mensagem: basicamente, “o quê dizer”, “para quem” e “de que forma”. Surgiram, então, três ferramentas proprietárias, que desenvolvemos a fim de alcançar o status de criação estratégica, aquela totalmente compromissada com o DNA da marca e com os objetivos da empresa. São elas: Brief Canvas, Buyer ID e Lupa. Juntas, elas nos permitem envolver especialistas das cinco empresas do Grupo com a equipe de Marketing do cliente, em atividades dinâmicas e conclusivas, na busca pelo consenso técnico e pelo melhor resultado para as marcas. São instrumentos criados internamente para utilização no planejamento para nossos clientes, mas que são compartilhados de forma generosa pelo Instituto JD Rodrigues, braço acadêmico do Grupo OM, que tem como missão disseminar a cultura da Comunicação Integrada de Marketing no país e, para isso, interage com as universidades e com todo o mercado, por meio de workshops, cursos e pelos artigos que publicamos por aqui. Sejam sempre bem-vindos.

Publicado originalmente no portal do Grupo OM em Dezembro de 2019.

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A incompetência artificial

Em um momento em que se discute a Inteligência Artificial Emocional, uma das pautas do SXSW deste ano, ainda existem muitas empresas brasileiras se batendo no primeiro estágio desse processo, com chatbots de pré-atendimento.

Pessoalmente, já acho um absurdo ter que passar dados para um robô, começando pelo CPF, e depois de enfrentar uma maratona de opções para a triagem do assunto, quando um ser humano finalmente atende a ligação a primeira coisa que pede é o mesmo CPF que você digitou no início do atendimento. É um claro sinal de falha no algoritmo, que demonstra pouca inteligência e baixa confiança no trato com os dados capturados. Se não estão usando para isso, estão usando para quê?

A coisa fica mais grave quando envolve problemas complexos, que exigem a aplicação do aprendizado das máquinas, mas esse é um estágio que poucas empresas já alcançaram no Brasil. O importante é começar devagar e com o máximo de transparência possível. Não há nada pior do que conversar com um robô que tenta se passar por uma pessoa de carne, ossos e neurônios.

Recentemente, vivi esse dilema quando tentei quitar um empréstimo consignado que minha mãe, de 80 anos, fez em uma instituição financeira ligada a um grande banco, sem a menor necessidade, apenas porque a convenceram de que era um bom negócio. Prefiro acreditar na justiça divina, já que a dos homens passa por uma terrível crise de caráter institucional, e imaginar que exista uma laje bem quente para acomodar empresários que abusam da confiança ou ingenuidade de idosos. Estou poupando aqui os funcionários assalariados ou terceirizados que precisam trabalhar e alcançar metas.

O problema era relativamente simples: precisava trocar a senha, uma vez que minha mãe já não se recordava mais dela, entrar no aplicativo e concluir a operação. O complicador foi o envio do código de segurança para um telefone que ela já não possui mais, ou seja, era necessário alterar os dados cadastrais. Foram três dias de intensa troca de mensagens pelo WhatsApp, sempre com o mesmo texto, ipsis litteris, mas cada vez apresentado com um nome diferente. Falei com Sara, Jéssica, Isabel e mais uns dez pseudônimos genéricos. Em cada uma das vezes, informava o telefone antigo e o novo e solicitava a troca. Cheguei a concluir o processo algumas vezes, mas quando voltava ao aplicativo e selecionava “alterar senha”, a resposta automática dizia que o código havia sido disparado para… o telefone anterior. Comecei a avaliar o serviço com nota zero, até que, finalmente, alguém de verdade assumiu a interlocução. Quando expliquei pela última vez a situação, me perguntaram se eu gostaria de receber um código de barras ali mesmo para efetuar a quitação. Aceitei, paguei e atingi meu objetivo inicial. Mas o problema em si não foi resolvido.

São exemplos como esse, que recheiam as redes sociais e os portais de reclamação, que indicam o quanto estamos longe de avançar nos debates que se iniciam nesta semana em Austin. Enquanto as máquinas começam a interagir emocionalmente com clientes de forma experimental nos grandes centros mundiais de tecnologia, ainda estamos lidando com a incompetência real transferida para as máquinas.

 

Autor: Renato Cavalher

Publicado originalmente no Meio&Mensagem, em 12 de março de 2021.

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